quarta-feira, 1 de abril de 2015

O Divã

O Divã
Roberto Carlos e Erasmo Carlos
1972

Depois do estupendo disco de 1971, Roberto Carlos deu adeus à música negra norte-americana. Lançou em 1972, o disco, que talvez seja o mais melancólico, porém notável pela qualidade, feito com apuro e proficiência. Mais uma vez os belíssimos arranjos de Jimmy Wisner em "A Janela" e "A Distância" dão o tom do disco. As composições com o parceiro Erasmo Carlos mostram Roberto Carlos maduro, sereno e reflexivo. Ele encanta ao se mostrar encantado observando uma desconhecida grávida em "Você é Linda", emociona qualquer um ao questionar o acidente do qual foi vítima em "O Divã", surpreende com interpretação magistral em "Como Vai Você", de Antônio Marcos e ainda embala nossos sonhos em "Acalanto", de Dorival Caymmi

"O Divã" traz reminiscências da infância com mais referências ao pai, à mãe, aos irmãos e ao momento do acidente que o marcou para sempre:

"Relembro bem a festa, o apito
e na multidão um grito
o sangue no linho branco..."

Trecho no qual lembra o clima festivo que havia em Cachoeiro de Itapemerim antes da tragédia, a chegada do trem, o desespero e a mancha de seu sangue na roupa do homem que o socorreu.

"Fiz essa música quando vivia um momento de muita angústia no Rio de Janeiro, era um momento difícil. Fiquei lá quarenta dias e por uma série de razões depois voltei a São Paulo. Deitei no divã porque era um desafio!"
(Roberto Carlos)

Na época, o cantor não fazia análise, mas fantasiou isto na música, especialmente no trecho:

"eu venho aqui, me deito e falo pra você que só me escuta..."

Numa entrevista a Ronaldo Bôscoli, em 1977, o cantor afirmou que todos esses acontecimentos o fizeram amadurecer precocemente.

"Muito cedo tive contato com situações violentas, duras. Bicho, eu tenho quase setenta anos. Quando do meu desastre, perdi uns quinze anos. Depois, naquela noite fria da Holanda quando eu e Nice fomos tentar recuperar a visão do meu filho, perdi outros quinze. Envelheci quinze anos numa sala de espera. Foi o maior sentimento de impotência e solidão que senti na vida. Maior mesmo que o acidente que sofri tão menino!"

Talvez por tudo isso muitos vejam estampado no seu rosto uma indelével, indescritível, profunda e incorrigível tristeza, que é reforçada pelas próprias fotos de capa de seus álbuns, nas quais, em sua maioria, ele se exibe com um olhar muito melancólico, num semblante que parece de uma tristeza milenar.

Nesta casa nasceu e morou até os 13 anos, Roberto Carlos Braga, com deus pais Laura e Robertino, e seus irmãos Norma, Carlos Alberto e Lauro. 
A Infância e "O Divã"

O caçula Roberto Carlos Braga nasceu no dia do índio, 19/04/1941, às 5:00 hs, pesando 2,250 kg e medindo 42cm. A família morava na Rua Índios Crenaques, coincidência que o garoto gostava de comentar com seus colegas na escola. Essa rua que mais tarde teve seu nome mudado para João de Deus Madureira era mais conhecida mesmo por Rua da Biquinha, porque ali há uma bica de água natural muito utilizada pelos moradores. Embora estreita, sem saída e sem calçamento, é uma rua próxima do centro da cidade, começando ao pé da linha do trem da Leopoldina e terminando ao pé do Morro do Faria. E ali Roberto Carlos viveu sua infância, numa casa modesta, com varanda e muitas flores na janela, como ele descreve na canção "O Divã".

"Era uma casa realmente simples, com três quartos, uma sala e um quintal onde havia uma árvore alta que dava uma fruta pegajosa, cujo leite, quando seco, a gente mastigava e chamava de chiclete!"
(Recorda Roberto Carlos)

O Acidente

O fato aconteceu numa manhã de domingo, 29/06/1947, dia de São Pedro. A brisa deslizava do alto das serras. Naquele dia, Cachoeiro de Itapemerim amanheceu sorrindo e em festa para saudar o seu santo padroeiro que, segundo a Igreja Católica, foi morto e crucificado nessa data em Roma, durante o reinado do imperador Nero, no ano 65 d.C.

Era feriado na cidade, dia de desfiles, músicas, bandeiras, discursos, ruas cheias de gente e muita alegria. As duas bandas da cidade, a Lira de Ouro e a Banda 26 de Julho, faziam retreta na praça, tocando dobrados e muitos meninos já brincavam em volta do coreto ouvindo os músicos tocar.

Como tantas outras crianças da cidade, naquele dia Roberto Carlos saiu cedo e animado de casa para assistir aos festejos. Era tanta badalação que muitos pais preparavam roupa nova para os filhos estrearem justamente nesse dia. Por isso Zunga estava ainda mais contente, porque iria desfilar com os sapatinhos novos que ganhara na véspera. E qual criança não fica feliz ao ganhar uma roupinha ou um novo par de sapatos?

Logo que saiu à porta de casa, Roberto Carlos se encontrou com sua amiga Eunice Solino, uma menina da sua idade, que ele carinhosamente chamava de Fifinha. Frequentemente os dois estavam juntos, porque moravam na mesma rua e, mais tarde, foram estudar no mesmo colégio. Por várias vezes, a caminho da escola, era ela quem carregava o material de Roberto Carlos.

"Fifinha foi a minha grande companheira da infância!"

Pois naquela manhã os dois desceram mais uma vez juntos em direção ao local dos desfiles. Ao chegarem num largo, logo abaixo da rua em que moravam, já encontraram todos em plena euforia. Desfiles escolares, balizas e muitos balões coloriam o céu do pequeno Cachoeiro, ao mesmo tempo em que locomotivas se movimentavam para lá e para cá. Construída na época dos barões do café, no século XIX, quando a cidade era um paradouro de trem de carga, a Estrada de Ferro Leopoldina Railways atravessava Cachoeiro de ponta a ponta.

Roberto Carlos
Por volta de nove e meia da manhã, Zunga e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile de um grupo escolar. Enquanto isso, atrás deles, uma velha locomotiva a vapor, conduzida pelo maquinista Walter Sabino, começou a fazer uma manobra relativamente lenta para pegar o outro trilho e seguir viagem.

Uma das professoras que acompanhava os alunos no desfile temeu pela segurança daquelas duas crianças próximas do trem em movimento e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a professora avançou e puxou pelo braço a menina, que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco de alguém que ele não conhecia, recuou, tropeçou e caiu
na linha férrea segundos antes da locomotiva passar. A professora ainda gritou desesperadamente para o maquinista parar o trem, mas não houve tempo. A locomotiva avançou por cima do garoto que ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal.

E assim, na tentativa de evitar a tragédia com duas crianças, aquela professora acabou provocando o acidente com uma delas.

Diante da gritaria e do corre-corre, o maquinista Walter Sabino freou o trem, evitando consequências ainda mais graves para o menino, que, apesar da pouca idade, teve sangue-frio bastante para segurar uma alça do limpa-trilhos que lhe salvou a vida.

Uma pequena multidão logo se aglomerou em volta do local e, enquanto uns foram buscar um macaco para levantar a locomotiva, outros entravam debaixo do vagão para suspender o tirante do freio que se apoiava sobre o peito da criança. Com muita dificuldade, ela foi retirada de debaixo da pesada máquina carregada de minério de ferro.

"Eu estava ali deitado, me esvaindo em sangue", recordaria Roberto Carlos anos depois numa entrevista. Mas naquele momento alguém atravessou apressado a multidão barulhenta e tomou as providências necessárias.

"Será uma loucura esperarmos a ambulância", gritou Renato Spíndola e Castro, um rapaz moreno e forte, que trabalhava no Banco de Crédito Real. Providencialmente, Renato tirou seu paletó de linho branco e com ele deu um garrote na perna ferida do garoto, estancando a hemorragia.

"Até hoje me lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu desastre", afirmou Roberto Carlos, que desmaiou instantes após ser socorrido. Esse momento trágico de sua vida ele iria registrar anos depois no verso de sua canção "O Divã", quando diz:

"Relembro bem a festa, o apito / e na multidão um grito / o sangue no linho branco...", numa referência à cor do paletó que Renato Spíndola usava no momento em que o socorreu.

Roberto Carlos
Naquela época em Cachoeiro do Itapemerim poucas pessoas possuíam automóvel e Renato Spíndola era uma delas. Ele pegou Roberto Carlos nos braços, colocou-o no banco de seu velho Ford e partiu a
toda velocidade rumo ao hospital da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro, o único hospital daquela região.

"Foi uma longa viagem. 'Traumas', uma de minhas composições conta bem isso", diz Roberto Carlos, citando outra canção confessional, lançada por ele em 1971, que em um dos versos fala do "delírio da febre que ardia / no meu pequeno corpo que sofria / sem nada entender...".

No meio daquele corre-corre, com várias crianças espalhadas pelas ruas, pais e mães se desesperavam. Chamavam por seus filhos. Perguntavam quem era a criança atingida. Qual o nome dela. A confirmação não demorou. É o Zunga, um menino que mora na Rua da Biquinha.

O acidente mudou o roteiro daquele dia em Cachoeiro. Para muita gente a festa perdeu a graça. O feriado acabou. Muitas crianças voltaram para suas casas.

"Lembro que eu estava desfilando toda prosa de luvas e de uniforme quando houve aquele alvoroço e o desfile dispersou. Todo mundo correu pra ver. É uma coisa de que jamais me esqueci. Houve uma dispersão geral", afirmou a pianista Elaine Manhães, que na época tinha quinze anos e desfilava pelo Liceu Muniz Freire.

Ao longo daquele dia, nas ruas, nos bares, nas residências, todos na pequena cidade só comentavam o acidente que vitimara o filho da costureira Laura e do relojoeiro Robertino. Como aconteceu isto? Era a pergunta que mais se fazia na cidade. Foi quando começaram a surgir as mais variadas e fantasiosas versões para o acidente, num disse-medisse que chegou até os dias de hoje.

Acidentes com trem não eram raridade em Cachoeiro de Itapemirim, já que a linha férrea cortava todo o perímetro urbano da cidade. Inúmeros registros estavam na imprensa desde os primórdios, principalmente envolvendo pedestres bêbados na periferia. Esse novo caso ganhou uma repercussão maior na época porque envolveu uma criança, foi no centro da cidade e aconteceu no dia dos festejos do padroeiro, quando havia uma grande movimentação de pessoas nas ruas.

Roberto Carlos
Ao chegar ao hospital, Zunga foi imediatamente atendido pelo médico Romildo Coelho, de 36 anos, que estava de plantão naquele domingo. Segundo ele, ao ver o menino constatou que a parte de baixo da perna acidentada estava pendurada apenas pela pele, mas o garoto não chorava muito, porque não estaria sentindo dor.

"Quando o trem esmagou a perna, arrancou todos os nervos e tirou a sensibilidade", explicou o médico. Ele recorda que o menino parecia ainda não ter a noção exata da gravidade do acidente. Em certo momento, ele apontou para o sapato que estava na perna acidentada e me disse: "Doutor, cuidado para não sujar muito o meu sapato porque ele é novo". Foi uma reação típica de uma criança, e de uma criança que não estava acostumada a ganhar sapatos novos com muita frequência.

Os pais e irmãos de Roberto Carlos só ficaram sabendo do fato quando ele já tinha sido socorrido pelo bancário Renato Spíndola. Em seguida foram todos imediatamente para o hospital, sem ainda saber a real gravidade do acidente. A primeira reação foi de revolta contra o maquinista Walter Sabino. O pai de Roberto Carlos estava convencido de que aquilo fora resultado de imprudência e desatenção do condutor do trem. Este, por sua vez, se explicava dizendo que não viu ninguém na linha férrea no momento em que fez a manobra para pegar um outro trilho e seguir viagem. Quando ele percebeu alguma coisa, numa fração de segundo a máquina já tinha atingido o garoto. Robertino Braga não se conformava e queria fazer justiça com as próprias mãos.

"Ele ficou tão fora de si que disse que ia matar meu marido. Walter teve que se esconder dentro da estação até que Robertino se acalmasse", afirma Anita Sabino, esposa do maquinista.

Naquela mesma manhã, no hospital da Santa Casa, o médico aplicou uma anestesia local de novocaína no acidentado e deu início à cirurgia. Para distrair um pouco a criança, o doutor Romildo pegava uma folha de papel em branco e ficava recortando bichinhos como peixes, lagartixas, cavalos.

Roberto Carlos precisou usar muletas até os 15 anos de idade, quando recebeu sua primeira prótese.



O Divã

Relembro a casa com varanda
Muitas flores na janela
Minha mãe lá dentro dela
Me dizia num sorriso
Mas na lágrima um aviso
Pra que eu tivesse cuidado
Na partida pro futuro
Eu ainda era puro
Mas num beijo disse adeus

Minha casa era modesta
Mas eu estava seguro
Não tinha medo de nada
Não tinha medo de escuro
Não temia trovoada
Meus irmãos à minha volta
E meu pai sempre de volta
Trazia o suor no rosto
Nenhum dinheiro no bolso
Mas trazia esperanças

Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Por isso eu venho aqui

Relembro bem a festa, o apito
E na multidão um grito
O sangue no linho branco
A paz de quem carregava
Em seus braços quem chorava
E no céu ainda olhava
E encontrava esperança
De um dia tão distante
Pelo menos por instantes
encontrar a paz sonhada

Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Por isso eu venho aqui

Eu venho aqui me deito e falo
Pra você que só escuta
Não entende a minha luta
Afinal, de que me queixo
São problemas superados
Mas o meu passado vive
Em tudo que eu faço agora
Ele está no meu presente
Mas eu apenas desabafo
Confusões da minha mente

Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam
Essas recordações me matam