sábado, 1 de junho de 2013

Olhos Coloridos

Olhos Coloridos
Macau
Início Década de 70

"Olhos Coloridos" nasceu de uma manifestação que aconteceu comigo numa situação social. Um amigo meu me convidou para assistir uma exposição escolar no Estádio de Remo no início dos anos 70. E aí eu achei legal... as crianças brincando, as professoras, e tudo... e fiquei apreciando!

Só que naquela época, nos inícios dos anos 70, a gente era muito "underground". A maneira de vestir, o cabelo... era muito mais normal: Acordava e mexia com o cabelo, ficava enrolando com o dedo assim e tal... e ele ia criando sua forma bem caverna. E as roupas eram rasgadas aqui... sandália... do jeito que eu queria vestir. Eu nem me olhava no espelho. Lavava o rosto, botava "o que tava", e tudo bem né!

E eu tava com meu colega e daqui a pouco me apareceu um soldado... assim do nada, de repente:


- Você quer me acompanhar?

Aí eu olhei assim...

- Como assim? Acompanhar pra onde? 
- Quer me acompanhar?
- Não, mas o Srº tem que me explicar porque eu tenho que lhe acompanhar!
- Olha, eu não vou te responder não bicho, você tem que me acompanhar se não eu vou te levar a força!
- Então eu não vou não. Se você não me explicar... eu não estou fazendo nada, eu estou com meu colega aqui, a gente veio ver uma exposição, estou admirando, vendo as crianças, as professoras! Qual é o motivo?

E ele me levou à força. Rapidamente me empurrou e me largou na área militar... e tinha um tenente também que disse:

- Olha eu estava te observando daqui... você é muito folgado!
- Eu não sou folgado não. Eu estou falando o que é do meu direito:  Porque eu estou aqui? O que eu cometi? Qual o crime que eu cometi para estar aqui?
- Você não tem que responder nada, tá entendendo? Se ele teve que pegar você, você tinha que vir!
- Não, não é assim não...?
- Você fala demais cara... com esse cabelo enrolado, olha sua roupa como é que tá! Olha a sandália e tudo!
- O que é que tem o meu cabelo? O que é que tem a minha roupa? Eu não estou andando nu! Essa é a minha roupa que estou usando... tranquilo como todo mundo moderno usa. Qual é o problema?
- O problema é que você é um crioulo muito folgado!
- Olha... crioulo eu não sou não, eu sou negro. Mas o sangue que corre na sua veia, corre igual na minha, é vermelho. Então você é sarara crioulo!

Aí ele ficou furioso e me agrediu com um tapa e disse:

- Leva ele!

Aí um outro soldado falou:

- Leva ele pra onde?
- Pra onde vocês quiserem!

Macau e Sandra de Sá
E aquilo me assustou, me deixou assim meio apavorado. E eu pensei: vão me matar! E me colocaram numa prisão provisória. Era como se fosse um presídio porque não tinha vaga... me colocaram ali.  É uma emoção tão grande falando assim, que é realmente doloroso isso, você passar por uma situação dessa!

Quando de repente escutei:

- Macau!

Ahhh meu Deus do céu, pintou uma salvação! (Pensei)

- Sou eu, vamos embora Macau, pra casa!
- Não, eu não vou pra casa não!

- Você vai pra onde?
- Ah não sei, acho que eu vou até a praia... não sei... deixa eu ficar sozinho por favor!

Cheguei na beira do mar, sentei na areia e fiquei olhando para o mar e comecei a chorar. Mentalmente começou a vir a letra, ali na hora:


"Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir..."

E aí ela veio toda assim, inteira... Eu levantei rapidamente e saí correndo para que não escapasse aquilo. Cheguei em casa peguei o violão rapidinho e veio os acordes, a melodia e a canção!

Foi uma coisa de Deus, foi uma coisa de luz, espiritual, que iluminou aquela minha revolta, anestesiou a minha raiva, a minha rebeldia e me deu alegria por esta poesia tão real.


"E vagabundo pegou ele e foi preconceituoso mesmo, foi racista. De repente esses caras são tão imbecis que não perceberam o presente de certa forma que deu para uma pessoa que pensa, para um ser que respeita, para um ser que vive a vida sem frustrações , sem recalques, sem revoltas..."
(Sandra de Sá)

Essa música eu deixei lá no arquivo, pra mim. Ela foi feita pra mim, pelo meu manifesto, apenas pra mim. Eu achava que ninguém iria prestar atenção e ia dizer: "Essa música é muito ruim, essa música é muito política, essa música fala muito de preconceito... não sei o que". Mas era um preconceito, então ficou só para mim.

Eu estava numa situação realmente muito ruim, sem trabalho, sem emprego, com a mulher grávida. Então o meu sonho só restava da música. E todo mundo, quando eu entrava nas editoras, dizia: "Essa música aí tem a ver com uma cantora que está gravando um disco. Ela é Sandra Sá".

O Durval Ferreira era o diretor artístico da RGE quando ouviu "Olhos Coloridos", pegou o telefone e disse:

- Sandra vem pra cá, achei a música!

Pô, a gente ouviu e ficou maluco com "Olhos Coloridos". (Sandra de Sá)


Tive ainda a sorte maior porque o Durval Ferreira me convidou para ir ao estúdio e eu levei o violão. Quando ele me ouviu tocando ele sentiu alguma coisa diferente no meu ritmo e me botou lá no estúdio. Eu fiquei meio tímido e quando eu comecei a tocar eles ficaram assim também, mas... "que ritmo é esse?". Aí olharam para o Durval Ferreira, que estava no aquário:

- Ohhh Durval, ele está tocando diferente! Que negócio é esse?
- Não, vai na dele, é esse o ritmo aí!


"O Durval Ferreira sacou que o grande lance, o lance da música seria o Macau fazer. O Macau mandar a levada, pra mostrar: Olha, é isso! Então o que é que faz? Carrega o cara pro estúdio e 'bora' fazer!"
(Sandra de Sá)

"A gravação é maravilhosa, esse arranjo do Serginho Trombone é excepcional porque a música é muito simples, são 3 acordes, mas vai entrando os sopros, então aquilo vai criando uma atmosfera perfeita com a letra. A letra fala da negritude, da afirmação da negritude, então nada melhor do que todos os metais do sopro para reafirmar isso."

(Rodrigo Faour – Jornalista)

"Da mesma forma que o lance do violão do Macau, nas devidas proporções, essa importância desse arranjo de metais que o Serginho Trombone costurou a música toda. Quer dizer:  todo mundo se entendeu perfeitamente. "Olhos Coloridos" é isso cara, é sinal de harmonia."
(Sandra de Sá)


"Esse vinil aqui (mostrando um LP da Sandra de Sá), foi que realmente mostrou todo poder da música negra através da Sandra. Eu fico muito contente e feliz pois toda vez que eu vejo este disco sei que eu faço parte deste caminho."
(Macau)

"Olhos Coloridos se impôs como música de trabalho. Estourou geral... não tinha zona norte, oeste, leste, sul... na casa de todo mundo. Olhos Coloridos é geral!"
(Sandra de Sá)

"Toda hora que eu passava na rua ouvia tocando. Eu estava em meu barraco na Rocinha e ouvindo no barraco do vizinho "Olhos Coloridos"... E falava comigo mesmo: Está tocando a minha música!"
(Macau)



Olhos Coloridos

Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir...

Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinado
Também querem enrolar...

Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso...

A verdade é que você
(Todo brasileiro tem!)
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará, sarará
Sarará, sarará
Sarará crioulo...

Sarará crioulo
Sarará crioulo...(2x)

Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Que eu tô sempre na minha
Não! Não!
Não posso mais fugir
Não posso mais!
Não posso mais!
Não posso mais!
Não posso mais!

Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinados
Também querem enrolar...

Cê ri! Cê ri! Cê ri!
Cê ri! Cê ri!
Cê ri da minha roupa
Cê ri do meu cabelo
Cê ri da minha pele
Cê ri do meu sorriso...

Mas verdade é que você
(Todo brasileiro tem!)
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará, sarará
Sarará, sarará
Sarará crioulo...

Sarará crioulo
Sarará crioulo...(3x)


Fonte: Por Trás Da Canção