sábado, 2 de março de 2013

O Ébrio

O Ébrio
Vicente Celestino
1935

"O Ébrio", canção de autoria de Vicente Celestino e interpretada por ele mesmo, popularizada não só pelo seu tema - a história de um homem abandonado pela mulher que busca consolo nas bebidas - como pelo enorme sucesso de bilheteria que foi o filme de título homônimo. A música já estava sendo executada nas emissoras de rádio desde 1937, mas quando Gilda de Abreu, esposa de Vicente Celestino, transformou o tema em filme, em 1946, protagonizado pelo próprio Vicente Celestino, o sucesso, tanto do filme quanto da música, foi estrondoso.

"O Ébrio" é um clássico do cinema brasileiro e foi um dos filmes mais populares do Brasil, ficando duas décadas em cartaz, sendo também o filme brasileiro do qual mais cópias se tiraram. Estima-se que, somente nos seus primeiros quatro anos, foi visto por 4 milhões de espectadores em um país que acabara de chegar a 50 milhões de habitantes.

A História Narrada no Filme

Gilberto Silva, um rico, brilhante e famoso médico no Rio de Janeiro, mas cercado de parentes interesseiros e sem escrúpulos, é loucamente apaixonado pela sua atraente esposa, Marieta, uma mulher frívola e de caráter duvidoso. Seu ambicioso primo José, fingindo louca paixão, consegue seduzir Marieta e convencê-la a fugir com ele para os Estados Unidos, levando dinheiro e jóias do casal. Gilberto fica arrasado com o abandono e traição da esposa, e passa muitos dias recolhido à sua casa, acometido do mais fundo desespero.

Numa madrugada, vagando pelo centro do Rio de Janeiro, é única testemunha de uma tragédia: um homem é atropelado e esmagado por um carro em alta velocidade. Vendo que o homem não porta nenhum documento de identidade e que tem a sua mesma compleição física, Gilberto coloca nos seus bolsos os seus documentos pessoais e vai embora, nunca mais retornando ao seu lar.

Os jornais no outro dia estampam a notícia da sua morte. Morre oficialmente o médico Gilberto e nasce um ébrio que desperta admiração e simpatia pelas suas maneiras educadas e por uma sólida cultura que transparece do seu jeito filosoficamente amargo e descrente de interpretar o seu cotidiano de bêbado.

Anos depois, Gilberto, junto com seu inseparável amigo Pedro, o único que conhece a história da sua vida, está bebendo num sórdido bar da zona boêmia do Rio de Janeiro, quando é interpelado por uma jornalista que fazia uma reportagem sobre o drama do alcoolismo. Ela deseja saber por que ele bebe. "Eu bebo para esquecer", responde Gilberto, e, ato contínuo, passa a mão num violão e começa a cantar a sua história. Todo o bar fica num mais profundo, respeitoso e emocionado silêncio. O português, dono do bar, enxuga uma furtiva lágrima dos olhos, enquanto a alma daquele bêbado escorre dolorosamente pelo violão... Gilberto termina a canção, recebe uma garrafa de cachaça como prêmio e vai bebê-la em outro compartimento do bar.


Mas, uma decadente mulher que se encontrava no bar, mendigando um prato de comida, quase enlouquece de assombro e desespero, pois reconhecera a voz do cantor. Não era possível, mas aquele homem, que cantara de maneira tão comovente ao violão, tinha a voz do seu falecido marido Gilberto e aquela história - ah, aquela história! - ela a conhecia muito bem. Era Marieta, pálida sombra da bela e elegante mulher de outrora, caída na sarjeta da pobreza e do abandono. Quando José, o vil amante por quem desprezara lar e marido, a trocara nos Estados Unidos pelo jogo, bebida e novas amantes, ela voltara para o Brasil, mas, repudiada por amigos e parentes, entregara-se à vida boêmia e à prostituição.

Quando Pedro, o inseparável amigo de Gilberto, volta para o salão principal tentando conseguir do português mais uma nova garrafa de cachaça, Marieta o pega pelo braço e lhe pergunta se o seu amigo não se chama Gilberto. Pedro se sobressalta, quer negar, desvencilhar-se dos braços da aflita mulher, mas o desespero estampado no rosto dela o comove. Confirma que o seu amigo se chama Gilberto e só então, Marieta revela a sua identidade: é a ex-esposa dele e precisa pedir-lhe perdão por todo o mal que lhe causou. Suplica a Pedro que convença Gilberto a recebê-la, ali mesmo, naquele bar. Pedro promete fazer isso, manda a mulher esperar e vai conversar com Gilberto.

Ainda não refeito da comoção que a espantosa revelação da mulher lhe causara, Pedro tem dificuldade para dizer claramente a Gilberto que Marieta, a sua ex-esposa e por cujo amor desgraçou toda a sua vida, está ali, do outro lado, e que deseja pedir-lhe perdão. Pedro é um bêbado romântico e amigo sincero de Gilberto e logo fantasiou na sua mente a reconciliação dos ex-cônjuges. Gilberto abandonando a garrafa e voltando a exercer a Medicina, enfim, voltando à vida. Por isso, tenta preparar o espírito do amigo para a tremenda entrevista, pois está convencido de que, ao reencontrar a amada, Gilberto abandonará a sarjeta física e moral em que caiu há muitos anos. Nervoso, com frases cautelosamente hipotéticas, não consegue se fazer entender completamente por Gilberto, mas arranca dele uma promessa: se um dia Marieta voltasse, ele a perdoaria.

Contente e esperançoso, Pedro corre para o outro do bar e traz Marieta pela mão. Ela se atira nos joelhos de Gilberto, sentado à mesa, e lhe suplica perdão. Gilberto, controlando a emoção e surpresa, olha para Marieta com infinita pena no olhar, acaricia os seus cabelos e diz: "Eu já te perdoei há muito tempo, Marieta". A seguir, levanta-se e caminha para a saída do bar. Pedro pergunta aflito: "Gilberto, meu amigo, não vais levar a tua mulher?", ao que Gilberto responde, triste, amargo e definitivo: "Eu disse que perdoava, mas não disse que me reconciliava". Marieta soluça mais forte, Pedro baixa a cabeça desolado, e Gilberto sai para a noite fria e escura, enquanto estronda no salão do cinema o vozeirão do tenor cantor/ator Vicente Celestino, cantando "O Ébrio".

Para conhecer mais sobre a vida e obra de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, visite o blog Famosos Que Partiram.



O Ébrio

Nasci artista. Fui cantor.
Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto.
O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória.
Durante a minha trajetória artística tive vários amores.
Todas elas juravam-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor.
Uma noite, quando eu cantava a Tosca,
uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor.
Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa.
Um dia, quando eu cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus.
Não pude mais cantar.
Mais tarde, lembrei-me que ela, contudo, me havia deixado um pedacinho de seu eu: a minha filha.
Uma pequenina boneca de carne que eu tinha o dever de educar.
Voltei novamente a cantar mas só por amor à minha filha.
Eduquei-a, fez-se moça, bonita...
E uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar.
Daí pra cá eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa.
Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo.
Nunca mais fui nada.
Nada, não!
Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ébrio.
Ébrio...

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Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer,
aquela ingrata que eu amava e que me abandonou.
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer,
não tenho lar e nem parentes, tudo terminou.
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo,
cada colega de infortúnio é um grande amigo.
Que embora tenham como eu seus sofrimentos,
me aconselham e aliviam meus tormentos.
Já fui feliz e recebido com nobreza até,
nadava em ouro e tinha alcova de cetim.
E a cada passo um grande amigo que depunha fé,
e nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então,
o falso lar que amava e que a chorar deixei.
Cada parente, cada amigo, era um ladrão,
me abandonaram e roubaram o que amei.
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar,
quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição.
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar,
este ébrio triste e este triste coração.
Quero somente que na campa em que eu repousar,
os ébrios loucos como eu venham depositar.
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo,
e suas lágrimas de dor ao peito amigo.


Fonte: Recanto das Letras
Texto de Antônio Maria S Cabral