quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Avôhai

Avôhai
Zé Ramalho
1975

A música "Avôhai" surgiu para Zé Ramalho durante uma experiência alucinógena.

Há livros muito bons e, ao mesmo tempo, estranhos. É o caso de "Zé Ramalho - O Poeta dos Abismos", de Henri Koliver. À primeira vista, trata-se de uma biografia. Depois, percebe-se que é um longo depoimento do cantor e compositor.  Adiante, Henri Koliver retoma o livro e comenta a música do artista paraibano. Ainda que falte algum ajuste editorial, a obra é absolutamente necessária para compreender tanto a música quanto a vida do criador de "Avôhai".

A música de Zé Ramalho pode ser compreendida por qualquer pessoa, mas, como é recheada de "mensagens" - de um misticismo sincrético, por assim dizer - e de histórias pessoais que não podem ser explicadas inteiramente numa música, ou em algumas músicas, o livro é esclarecedor. Aqueles que querem compreender o músico, de maneira mais ampla, devem consultar o livro. Agora, se esperam um trabalho crítico, devem escarafunchar noutro lugar. É uma obra a favor, com a própria voz do músico.

"Avôhai" é, sem dúvida, a música mais expressiva de Zé Ramalho, a que mais o identifica, embora musicalmente talvez não seja a mais rica. O título significa, obviamente, avô e pai, e, conhecendo a história, sabe-se que não poderia ser "Haiavô" ou "Paiavô" (o avô é mais decisivo do que o pai).

"A revelação de 'Avôhai' aconteceu durante uma experiência com cogumelos alucinógenos", relata o compositor. Durante a beberagem, ele diz que escutava uma voz dizendo "Avôhai, Avôhai". A droga, de algum modo, funcionou como uma sessão de terapia, na qual, por meio de associações livres, o sujeito vai se descobrindo, se revelando para si mesmo.

Passados alguns dias do uso dos cogumelos, Zé Ramalho escreveu a letra.


"Ela chegou de uma vez. (...) Peguei papel e caneta e fiz a letra muito rápido, tudo chegava em um turbilhão. Foi a única vez que isso aconteceu, uma forte e intensa experiência espiritual. Muito estranho... totalmente mediúnica. Como o velho Billy (William Shakespeare) dizia, 'há muito mais coisas entre o céu e a terra do que podemos imaginar'. Havia muita coisa de Dylan pairando em minha cabeça. Eu ouvi como se fosse a voz dele. Quando fiz a letra, já sabia dos movimentos musicais; quando estava escrevendo, já sabia das passagens todas. A letra chegou junto com a melodia, e descreve minha experiência!"

A experiência, no caso, é a própria vida de Zé Ramalho.

"'O brejo cruza a poeira' é minha origem, o lugar onde nasci, de onde vim. A cidade de Brejo da Cruz situa-se no sopé da chamada 'Pedra de Turmalina'. (...) 'O brejo cruza a poeira' é uma referência ao êxodo realizado quando abandonamos a cidade e nos dirigimos a Campina Grande. (...). Essa poeira que cruzamos representa a saída, a passagem de uma condição para outra, a partida definitiva do Brejo. Eu tinha uns 5 anos de idade. Tudo ficou para trás: as brincadeiras com os meninos, como bonecos de barro - cavalinhos e boizinhos  -, correr atrás de bode no meio da rua. (...) O terreiro da usina é uma referência a um local existente na cidade, onde eu brincava em minha infância."

A música inclui "várias formas de cantoria", diz Zé Ramalho, como "martelo agalopado, embolada. 'Na altura em que mandar' é uma expressão utilizada pelos emboladores de coco - aqueles que tocam com pandeiro. O 'pra doutor não reclamar' é uma outra tirada de embolada, que os caras usam para sair dos desafios. 'Avôhai' é quase um martelo agalopado, mas comporta muitas formas de cantoria diferentes. Tem muita informação dentro da música: visual, modalidades poéticas. 'Avôhai' é uma música que atrai a atenção das pessoas, pela forma como descreve as situações e as imagens que sugere. Ao mesmo tempo em que ela descreve certos acontecimentos, convida as pessoas a participarem dessa viagem, em razão do clima místico no qual ela se encontra impregnada: a figura do velho, que carrega tantos símbolos e significados. 'Avôhai' é uma espécie de elo perdido, aglutinando tudo, de trás para a frente e da frente para trás".

Se é uma espécie de biografia de Zé Ramalho, um relato imaginativo de sua infância, é também, na visão do artista, um relato "das origens da humanidade".


O que o indivíduo não pode ou não quer revelar, escondendo partes incômodas da vida íntima, o músico desvela por meio de sua arte. Zé Ramalho conta que prefere não saber muito sobre a razão de a mãe ter permitido que fosse criado pelos avós. Em "Avôhai" a figura central é o avô de Zé Ramalho, José Alves Ramalho. "Avôhai é a figura do avô. Fui criado por ele, depois da morte de meu pai (afogou-se quando Zé Ramalho tinha 2 anos). Ele fez a figura do avô e do pai!".

"'Avôhai' é a junção da trindade avô, pai e filho. É também a Santíssima Trindade, e a continuidade da espécie. Mas foi tudo inspirado pela figura de meu avô, que me ensinou a amar a natureza, a não maltratar os animais, a levar uma vida reta". O músico era católico devoto, como os avós. Liam a Bíblia frequentemente. "Ela passava de mão em mão e cada um lia um trecho!".

José Alves Ramalho, que viveu 83 anos, era "tudo" para Zé Ramalho. "Eu o via, às vezes, como um leão, parado, olhando as crias. (...) Meu avô era aquele cara que arranjava tudo, resolvia tudo!". O Avôhai, homem preocupado com formação e a informação, queria que o neto soubesse das coisas. Tanto que Zé Ramalho prestou vestibular e entrou para a faculdade de Medicina.

"Avôhai", além de discutir a continuidade da espécie, representa, para o místico Zé Ramalho, o começo da carreira. "Tudo começa com essa música. 'Cruzando a soleira...', o cara está chegando. Ela abriu meu primeiro disco e uma porta; comecei a montar uma história incrível com essa música", anota o artista.

Zé Ramalho diz que "a companheira que nunca dormia só" é a solidão.

"A porteira da letra é uma referência à Porteira do Tendó, uma enorme gruta onde meu avô me levava no horário do pôr do sol, e de onde saíam milhares de morcegos em busca de alimento, fazendo um barulho impressionante. Aquilo me fascinava e me assombrava ao mesmo tempo!"

Salman Rushdie conta em "Joseph Anton", suas memórias do período em que esteve escondido para não ser assassinado por iranianos, que só se tornou um grande escritor, com romances consistentes, depois que decidiu falar do que sabia - sua vida e a vida dos indianos. Zé Ramalho fez o mesmo percurso:

"Só depois de ter absorvido muita coisa pop é que descobri e compreendi o quanto os valores da minha terra eram importantes. Era isto que faltava em meu trabalho: o universo de minha terra, a coisa milenar, ligada às raízes, esse mergulho. Foi quando eu entrei na cultura de cordel, dos violeiros. 'Avôhai' reúne todas as informações do universo dos violeiros e repentistas, da literatura de cordel e entra como balada, como Dylan, como Pink Floyd!"

Na família de Zé Ramalho, os homens morrem (ou morriam) cedo. Ele acha que escapou da "maldição", pois tem 64 anos.



Avôhai

Um velho cruza a soleira
de botas longas, de barbas longas
de ouro o brilho do seu colar.
Na laje fria onde quarava
sua camisa e seu alforje
de caçador...

Oh! Meu velho e Invisível
Avôhai!
Oh! Meu velho e Indivisível
Avôhai!

Neblina turva e brilhante
em meu cérebro coágulos de sol.
Amanita matutina
e que transparente cortina
ao meu redor...

E se eu disser
que é meio sabido
você diz que é meio pior.
Mas e pior do que planeta
quando perde o girassol...

É o terço de brilhante
nos dedos de minha avó.
E nunca mais eu tive medo
da porteira
nem também da companheira
que nunca dormia só...

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!
O brejo cruza a poeira
de fato existe
um tom mais leve
na palidez desse pessoal.
Pares de olhos tão profundos
que amargam as pessoas
que fitar...

Mas que bebem sua vida
sua alma na altura que mandar.
São os olhos, são as asas
cabelos de Avôhai...

Na pedra de turmalina
e no terreiro da usina
eu me criei.
Voava de madrugada
e na cratera condenada
eu me calei.
E se eu calei foi de tristeza
você cala por calar.
Mas e calado vai ficando
só fala quando eu mandar...

Rebuscando a consciência
com medo de viajar.
Até o meio da cabeça do cometa
girando na carrapeta
no jogo de improvisar.
Entrecortando
eu sigo dentro a linha reta
eu tenho a palavra certa
prá doutor não reclamar...

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Você Não Me Ensinou A Te Esquecer

Você Não Me Ensinou a Te Esquecer
Fernando Mendes, José Wilson e Lucas
1979

Caetano Veloso abre a porta e toma um susto: Ouve uma de suas canções mais íntimas, "Mãe" - que de tão íntima ele nem teve a certeza de que deveria gravar - cantada de forma sentida e respeitosa por Fernando Mendes, compositor de clássicos bregas como "Cadeira de Rodas".

O motivo do encontro, testemunhado pelo Globo, era justamente o oposto: Surpreender Fernando Mendes ao mostrar, em primeira mão, a gravação que Caetano Veloso fez de "Você Não Me Ensinou a Te Esquecer", um dos maiores sucessos de Fernando Mendes do fim dos anos 70, redescoberto como tema de amor do filme "Lisbela e o Prisioneiro", de Guel Arraes.

Fernando Mendes compôs e gravou "Você Não Me Ensinou a Te Esquecer" em 1979, na época em que seguia os passos românticos do cantor Roberto Carlos. É uma sofrida canção de amor, simples e direta como os muitos sucessos populares que o cabeludo e cacheado, até hoje fiel ao corte, compositor teve ao longo de três décadas de carreira. Uma canção que se convencionou chamar de brega.

"Brega é o nome que o invejoso dá ao vitorioso!" replica Fernando Mendes, que diz não se incomodar com a definição. Caetano Veloso, para quem superar tal preconceito com a música popular sempre foi uma bandeira, quase uma razão de ser de sua carreira, incomoda-se, sim.

"É uma boa definição essa do Fernando" provoca Caetano Veloso. Há no Brasil muitos preconceitos, por exemplo contra as canções de harmonia simples. O rock quando surge parece algo regressivo. Então não se percebe como ele trouxe sofisticação formal em termos de contraponto, de timbres, de força de atitude.

Para Caetano Veloso, o mesmo raciocínio em relação ao rock pode ser aplicado no que se chama de brega. Ou seja, há uma simplificação do pensamento sobre música no Brasil.

"Muita gente me acusa de falta de critérios quando defendo esse ou aquele tipo de música, de defender o vale-tudo. Mas o que eu busco é complexificar os critérios críticos. Era essa complexidade que eu buscava em todas as vezes que provoquei o bom gosto dominantes de Vicente Celestino ao 'Tapinha'"

Para Caetano Veloso, antes de expressar tal opinião gravando os rejeitados pelos bem-pensantes da MPB, ele a incorporou em sua própria obra. "É uma postura que já estava nas minhas composições em 1966, em 'Baby', 'Divino', 'Maravilhoso', 'Superbacana', e depois 'Tá Combinado', 'A Luz de Tieta'. Não aceito, nem nunca aceitei essa divisão que impõem à música brasileira entre a canção popular e a música de boa qualidade da MPB.

Uma Breve Análise da Letra

O eu-lírico expressa uma saudade imensa da pessoa amada. Há passagens que mostram um erro cometido pelo autor, a vontade de consertá-lo e o pedido de uma chance. No refrão, o eu-lírico demonstra desespero de encontrar a pessoa amada, o abandono por ela e falta de uma direção na vida. Em suma, há um saudade da pessoa amada, um desespero por não encontrá-la e uma dúvida do que fazer agora que o autor está sozinho, abandonado.
(Maria Eugênia)



Você Não Me Ensinou A Te Esquecer

Não vejo mais você faz tanto tempo,
que vontade que eu sinto.
De olhar em seus olhos, ganhar seus abraços,
é verdade, eu não minto.

E nesse desespero em que eu me vejo,
já cheguei a tal ponto.
De me trocar diversas vezes por você,
só pra ver se te encontro.

Você bem que podia perdoar,
e só mais uma vez me aceitar.
Prometo agora vou fazer por onde
nunca mais perdê-la 

Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer.
Você só me ensinou a te querer,
e te querendo eu vou tentando te encontrar.
Vou me perdendo,
buscando em outros braços seus abraços.
Perdido no vazio de outros passos,
do abismo em que você se retirou,
e me atirou e me deixou aqui sozinho.

Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer.
Você só me ensinou a te querer,
e te querendo eu vou tentando te encontrar.

E nesse desespero em que eu me vejo,
já cheguei a tal ponto.
De me trocar diversas vezes por você,
só pra ver se te encontro.

Você bem que podia perdoar,
e só mais uma vez me aceitar.
Prometo agora vou fazer por onde
nunca mais perdê-la.

Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer.
Você só me ensinou a te querer,
e te querendo eu vou tentando te encontrar.
Vou me perdendo,
buscando em outros braços seus abraços.
Perdido no vazio de outros passos,
do abismo em que você se retirou,
e me atirou e me deixou aqui sozinho.

Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer.
Você só me ensinou a te querer,
e te querendo eu vou tentando te encontrar.


segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Moça

Moça
Wando
1971

"Ele se foi, mas fico feliz em saber que fez uma música para mim!", essas foram uma das frases expressadas pela consagrada "Moça" que viveu uma história de amor com o cantor Wando, um dos ídolos românticos do Brasil que morreu 66 anos, em 08/12/2012.

A moça Sebastiana Gama, empresária, conhecida por Tiana Gama, encontrou Wando em 1971 durante um show em Santarém, PA. Na ocasião, os dois foram apresentados e tiveram um envolvimento. O encontro marcou a vida da empresária e inspirou um dos maiores sucessos de Wando ao compor a música denominada "Moça" na década de 70.

Quando nós nos conhecemos fomos a praia. Então estava deitada na areia e ele olhou para mim e falou:

"Você tem os cabelos tão lindos. Eu vou fazer uma música pra você!"

Mas não acreditei que isso iria acontecer, relatou Tiana Gama. Ele pegou o rascunhou e falou:

"Um dia você vai ver essa música que é para você!"

Depois daquele ano, a empresária perdeu o contato com o cantor. A música "Moça" foi lançada em 1975 no disco denominado "Wando", em seguida na trilha musical da primeira versão da telenovela "Pecado Capital". No mesmo ano, Wando esteve Santarém. Em entrevista a TV Tapajós, o cantor confirmou a origem da composição da letra.

"O segundo grande sucesso da carreira foi a música 'Moça' que teve uma concepção nessa cidade. 'Moça' foi uma música que começou a nascer aqui. É uma canção que devo muitas obrigações a ela porque abriu muitos caminhos do mundo para mim!"
(Wando)

Sebastiana Gama, a moça que inspirou a canção de Wando.
Tiana Gama ressalta o sentimento por ter contribuído com o sucesso e a história do cantor.

"Ele se foi, mas fico feliz em saber que fez uma música pra mim. Que todas mulheres ao ouvirem essa música saibam que foi feita com muita amor, eu sinto que foi amor porque se não, ele não teria feito!"
(Sebastiana Gama)

Mais ou menos no início dos anos 90, a Rede Globo colocou no ar um novo programa musical nas tardes de domingo para recordar e reapresentar cantores que estavam sumido do cenário artístico e outros que continuavam com grandes sucessos. Numa dessas apresentações, Wando era a bola da vez, e ao ser perguntado sobre o seu maior sucesso musical, "Moça", relatou com notoriedade, que de fato a música foi inspirada na cidade de Santarém, em homenagem a moça, que conheceu nos anos 70.

"'Moça' é uma música minha, que foi feita em Santarém, uma cidade que fica no Pará, depois de conhecer uma criatura que me olhou com os olhos de quem queria alguma coisa e com certeza foi correspondida e aconteceu às 3:00 da manhã!"
(Declarou Wando num bate-papo online com fãs)

Na conversa, o cantor não revelou o nome da moça. Mas, alguns santarenos já tinham conhecimento dessa história, que teria se passado com a Sebastiana Gama, a notável e inesquecível Tiana Gama.



Moça

Moça,
me espere amanhã.
Levo o meu coração,
pronto pra te entregar.

Moça,
moça eu te prometo.
Eu me viro do avesso,
só pra te abraçar.

Moça,
sei que já não é pura.
Teu passado é tão forte,
pode até machucar.

Moça,
dobre as mangas do tempo.
Jogue o teu sentimento,
todo em minhas mãos.

Eu quero me enrolar nos teus cabelos,
abraçar teu corpo inteiro.
Morrer de amor,
de amor me perder.
Eu quero, eu quero...

Eu quero me enrolar nos teus cabelos,
abraçar teu corpo inteiro.
Morrer de amor,
de amor me perder.

Moça,
sei que já não é pura.
Teu passado é tão forte,
pode até machucar.

Moça,
dobre as mangas do tempo.
Jogue o teu sentimento,
todo em minhas mãos.

Eu quero me enrolar nos teus cabelos,
abraçar teu corpo inteiro.
Morrer de amor,
de amor me perder.
Eu quero, eu quero...

Eu quero me enrolar nos teus cabelos,
abraçar teu corpo inteiro.
Morrer de amor,
de amor me perder.
Eu quero, eu quero...

Eu quero me enrolar nos teus cabelos,
abraçar teu corpo inteiro.
Morrer de amor,
de amor me perder!