quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Cajuína

Cajuína
Caetano Veloso
1979

Por trás da música "Cajuína" existe uma história comovedora e que serviu de inspiração para o seu autor, o tropicalista Caetano Veloso. O baiano contou, durante uma apresentação em um programa de televisão, que o argumento da letra foi inspirado em um encontro com o pai do compositor, poeta, escritor e jornalista Torquato Neto, um de seus principais parceiros na Tropicália, autor de várias músicas, dentre elas, o clássico "Pra Dizer Adeus", em parceria com  Edu Lobo.

Torquato Neto foi um dos mentores intelectuais do movimento tropicalista, tendo escrito o breviário "Tropicalismo Para Principiantes" onde defendeu a necessidade de criar um pop genuinamente brasileiro. Foi também importante letrista de canções icônicas do movimento como "Geléia Geral", musicada por Gilberto Gil.

No final da década de 60, quatro dias após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) ser decretado, Torquato Neto viajou para Londres, onde morou por um breve período. De volta ao brasil, no início dos anos 70, começou a se isolar, sentindo-se alienado tanto pelo Regime Militar quanto pela "Patrulha Ideológica" de esquerda. Havia rompido com os amigos Tropicalistas e do Cinema Novo, declarava se sentir mais deprimido e, por vontade própria, se internou no Sanatório do Engenho de Dentro, sendo tratado com doses fortes do calmante Mutabon D.

Em 1972, aos 28 anos, Torquato Neto trancou-se no banheiro e ligou o gás, sendo encontrado morto no dia seguinte pela empregada. Deixou um bilhete de despedida que dizia:

"Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Para mim, chega! Não sacudam demais o Thiago que ele pode acordar."

Thiago era o filho de Torquato Neto de três anos de idade.

Caetano Veloso, nesse período, estava afastado do amigo.

No final dos anos 70, excursionando pelo Brasil com o show "Muito", Caetano Veloso chegou à Teresina, cidade natal de Torquato Neto, e recebeu no hotel, a visita do Drº Heli da Rocha, pai do amigo falecido. Caetano Veloso contou como foi esse encontro e como surgiu a inspiração para compor a música "Cajuína":

Torquato Neto e Caetano Veloso
"Eu já o conhecia pois ele tinha vindo ao Rio de Janeiro umas duas vezes. Mas era a primeira vez que eu o via depois do suicídio de Torquato Neto.
Torquato Neto estava, de certa forma, afastado das pessoas todas. Mas eu não o via desde minha chegada a Londres: Dedé e eu morávamos na Bahia e ele, no Rio de Janeiro, com temporadas em Teresina, onde descansava das internações a que se submeteu por instabilidade mental agravada, ao que se diz, pelo álcool.
Eu não o vira em Londres: Ele estivera na Europa mas voltara ao Brasil justo antes de minha chegada a Londres. Assim, estávamos de fato bastante afastados, embora sem ressentimentos ou hostilidades. Eu queria muito bem a ele. Discordava da atitude agressiva que ele adotou contra o Cinema Novo na coluna que escrevia, mas nunca cheguei sequer a dizer-lhe isso.
No dia em que ele se matou, eu estava recebendo Chico Buarque em Salvador para fazermos aquele show que virou disco famoso. Torquato tinha se aproximado muito de Chico, logo antes do Tropicalismo, entre 1966 e 1967. A ponto de estar mais frequentemente com Chico do que comigo.
Chico e eu recebemos a notícia quando íamos sair para o Teatro Castro Alves. Ficamos abalados e falamos sobre isso. E sobre Torquato Neto ter estado longe e mal. Mas eu não chorei. Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste, mas pouco sentimental.
Quando, anos depois, encontrei Drº Heli, que sempre foi uma pessoa adorável, parecidíssimo com Torquato, e a quem Torquato amava com grande ternura, essa dureza amarga se desfez. E eu chorei durante horas, sem parar. Drº Heli me consolava carinhosamente. Levou-me a sua casa. Dona Salomé, a mãe de Torquato, estava hospitalizada. Então ficamos só ele e eu na casa. Ele não dizia nada. Tirou uma Rosa-Menina do jardim e me deu. Me mostrou as muitas fotografias de Torquato distribuídas pelas paredes da casa. Serviu cajuína para nós dois. E bebemos lentamente.
Durante todo o tempo eu chorava. Diferentemente do dia da morte de Torquato, eu não estava triste nem amargo. Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Drº Heli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei.
No dia seguinte, já na próxima cidade da excursão, escrevi 'Cajuína'."

Para conhecer mais sobre a vida e obra de Torquato Neto, visite o blog Famosos Que Partiram.



Cajuína

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina.
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina,
Do menino infeliz não se nos ilumina.
Tampouco turva-se a lágrima nordestina,
Apenas a matéria vida era tão fina.
E éramos olharmo-nos intacta retina,
A cajuína cristalina em Teresina.


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